segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O uivo da Górgona - parte 9



Jonas passou a mão pela testa. Estava molhada de suor. Sua mão também, mas isso pareciar dar-lhe algum tipo de consolo:
- O som mexia com as pessoas. Aquela música ensurdecedora era... era como se deixasse as pessoas malucas. Uma das vizinhas estava na frente da casa. Era uma senhora idosa, acho que a  pessoa mais amável que já conheci. Sabe o tipo que se dá bem com todo mundo?
- Sei.
- Ela estava numa cadeira de macarrão, fazendo tricô, quando o som passou. O netinho estava brincando ao lado. Devia ter o que? Três anos? Quando o som começou a afetar as pessoas, ela segurou o garotinho pela garganta e enfiou a agulha de tricô no olho dele. O garoto começou a estrebuchar. Ela tirou a agulha e enfiou no outro olho. De repente, era como se todo mundo ficasse louco. Parecia que todo mundo queria matar ou machucar alguém.
- Mas você não foi afetado.
- Eu ouvi o som como todo mundo. Era ensurdecedor e eu coloquei as mãos nos ouvidos. Mas vi outras pessoas fazendo isso e elas também ficaram loucas. Não tenho a menor ideia de como continuei normal. Passei o resto da madrugada olhando da sacada. A loucura inicial foi diminuindo e as pessoas foram se acalmando, mas não voltaram ao normal. Ficaram, você viu...
- Ficaram como zumbis.
- Isso. – assentiu Jonas.
- E a garotinha?

domingo, 24 de agosto de 2014

O uivo da Górgona - parte 8



Jonas falava baixo e olhava em torno de tempos em tempos, como se suas palavras o fizessem alvo das criaturas:
- Entenda, eu moro aqui em cima do mercadinho. E tenho insônia. Faz um bom tempo que não tenho namorada e, nas noites em que não costumo dormir, costumo ficar na sacada do meu quarto, olhando para a rua, para o movimento. Foi o que fiz ontem. Era... deixe-me ver... onze horas, onze e meia? Tudo parecia normal. Muitas pessoas na rua, muitas na frente de suas casas ainda. Outras já começavam a se recolher. Uma noite normal como todas as outras. Então eu ouvi aquele som estranho e estrondoso. Parecia uma música, mas não era uma música. Parecia mais como se você colocasse dezenas de carros de som um do lado do outro e o resultado era uma... como dizer?
- Cacofonia? – atalhou Edgar.
- Sim, acho que seria isso. então havia esse som estranho, em volume altíssimo, se aproximando. E esse som parecia mexer com as pessoas. Eu olhava para elas e elas pareciam se transformar. Não sei dizer ao certo o que era, mas aquela música mexia com elas. E aquilo foi ficando cada vez mais próximo, até que pude perceber de onde vinha. Era uma espécie de carro de som, mas era bem maior, como um caminhão.
- Um veículo? Quem dirigia?
- Eu não conseguia ver. Ele passou na avenida principal, longe daqui. Além disso, logo parei de olhar para ele e olhei para a rua. Cara, foi o caos.

sábado, 23 de agosto de 2014

O uivo da Górgona - parte 7


A multidão ficou ali por algum tempo, dividindo o que restava da mulher, depois voltou a se colocar em marcha, ao passo arrastado àquele som irritante e monótono. Deixou atrás de si pouca coisa: um sapato, pedaços de roupas, tufos de cabelo, nada mais que isso.
O homem negro fez um gesto para Edgar, indicando que ficasse onde estava, e se levantou. Cauteloso, foi andando até a porta do mercado e olhou para fora.
- Foram embora! – disse, retornando.
- O que foi aquilo? Aquelas pessoas, aquelas pessoas comeram a mulher...
O outro franziu o cenho:
- Você não viu nada do que aconteceu esta noite?
- Eu dormi cedo. Estava cansado do trabalho. E meu quarto tem isolamento acústico.
- Talvez tenha sido sorte. Eu vi coisas piores que isso. Sabe-se lá o que essa garotinha viu! – disse, apontando para a menina ainda apertada ao peito de Edgar.
O outro estendeu-lhe a mão.
- As circunstâncias não são as melhores, mas meu nome é Jonas.
- Eu sou Edgar. O que é isso? O que está acontecendo? Que pessoas são aquelas?
O outro suspirou:
- Vou tentar começar do início.

O uivo da Górgona - parte 6




A mulher ainda se debateu um pouco mais, até soltar um último urro final, que parecia misturar dor e desespero. Então a multidão começou a se afastar dela. Cada um trazia algo na mão. Inicialmente Edgar achou que a tivessem roubado, então olhou direito. Foi a menina com a boneca que o fez perceber o que estava acontecendo.
(oh, meu Deus, oh meu Deus, não!)
Ela se afastou carregando algo na mão e levando à boca, como se fosse um pirulito. Mas não era um pirulito, ou um picolé, era
(oh, não, oh não!)
Um dedo humano. Era um dedo humano. Da mulher que fora encoberta pela horda. Edgar ainda podia ver o esmalte vermelho na unha, agora já desgastado.
A menina o levava à boca e chupava e lambia, como se fosse uma iguaria. Então colocou-o todo na boca, com a voracidade de que não come a meses. O dedo era grande demais para sua boca pequena, mas ela o mastigava abrindo e fechando muito a boca, o sangue escorrendo de seus lábios.
Uma mulher se apropriara do fígado e parecia não se decidir entre mastigar e lamber o sangue que escorria. Outro dos zumbis tentou roubar-lhe o pedaço escarlate de carne, mas ela o repeliu com um rosnado. Este voltou ao seu pedaço de carne e a esqueceu. Devia ser um dos seios e ainda trazia consigo uma parte do tecido da blusa, mas o homem comia assim mesmo, sem fazer qualquer distinção entre roupa e carne.
Edgar fechou os olhos da menina em seu colo, apertando-a contra seu peito, mas até mesmo ele tinha que se segurar para não vomitar com a imagem da multidão se fartando com aquele banquete nojento.

O uivo da Górgona - parte 5



Edgar não entendeu porque a mulher estava fazendo aquilo. Ela corria e gritava, como se estivesse em uma crise histérica.
Não demorou muito para que a multidão a visse e ouvisse. Agora parecia um corpo compacto, um monstro que já não se arrastava como antes, mas se movimentava rapidamente, como um animal de rapina.
A mulher ficou lá parada, como que hipnotizada.
(como o sapo que espera ser comido pela cobra)
No último momento pareceu entender o que ia acontecer e tentou escapar. Mas já era tarde demais.
Um homem com um macacão azul segurou seus cabelos. A mulher gritava e puxava desesperadamente, e quanto mais fazia isso, mais firmes as mãos a agarravam. Então, num esforço supremo, ela conseguiu se livrar, deixando um enorme tufo de cabelos nas mãos do outro. Mas isso só serviu para aumentar a sua dor, pois nesse momento outro já havia agarrado sua perna e outro o braço.
A horda a envolveu, como formigas em volta de um doce. Edgar podia ver uma mão se esticando ou um pé, e ouvir os gritos de desespero e dor. Tentou levantar-se, talvez no impulso de ajuda-la, mas o homem negro o conteve com um gesto.
- Não faça barulho!

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O uivo da Górgona - parte 4



O grupo compacto se arrastava pela rua, como se fosse um só corpo. Havia homens, mulheres, crianças, idosos, entre eles. Mas parecia um enorme grupo de mendigos. Estavam todos maltrapilhos, suas roupas sujas, seus cabelos desgrenhados. Andavam como se não soubessem para onde ir, como se apenas um estivesse acompanhando o outro. Tinham olhares perdidos, vagos, como se a alma lhes tivesse sido arrancada e não sobrasse nada além de uma casca. Uma menina de uns seis anos andava entre eles, ia andando e arrastando uma boneca pelos pés. O cabelo da boneca ia como uma vassoura, se arrastando pelo asfalto sujo, mas a menina parecia não se importar. Sua roupa estava muito suja e havia uma grande mancha marrom em sua calcinha de renda, que aparecia nitidamente por baixo da saia.
Uma das pessoas, um velho, se aproximou demais de um rapaz e foi empurrado. Ele se levantou e rosnou para este, como um cachorro que rosna para outro. Os dois se encararam, mas em segundo pareceram esquecer isso e voltaram a se juntar ao coro.
Em outro canto, uma velha usava apenas um lado de uma pantufa, o outro pé arrastando uma meia muito, muito suja. Um óculos quebrado pendia de seu rosto, preso apenas por uma orelha, mas ela não fazia qualquer gesto para tirá-lo ou coloca-lo de maneira correta.
(zumbis, pensou Edgar, parecem zumbis)
Então ouviu-se um grito e uma mulher correu, atravessando a rua pouco à frente do grupo.